Entrevista com a autora Adriana Negreiros sobre a obra Maria Bonita, sexo , violência e mulheres no cangaço @edobjetiva - Clã dos Livros

Entrevista com a autora Adriana Negreiros sobre a obra Maria Bonita, sexo , violência e mulheres no cangaço @edobjetiva

Compartilhe:


Clã dos Livros: Como foi o processo de construção do enredo?

Adriana Negreiros: Considero Maria Bonita, sexo, violência e mulheres no cangaço uma grande reportagem publicada em formato de livro. Com isso, quero dizer que o método foi bastante parecido ao adotado durante meu trabalho como jornalista, quando tenho uma pauta a cumprir. Em suma, numa primeira fase, fiz um mergulho nas fontes documentais e bibliográficas. Na sequência, conduzi entrevistas e visitei o cenário onde se passa a história. Encerrado esse momento, eu já tinha elementos suficientes para contar a história, o que me permitiu passar à fase posterior, de escrita do texto. Por fim, numa etapa que envolveu a participação de outros profissionais, realizou-se a checagem do material – isso consiste em verificar informações, datas, grafias e outros dados, de maneira a minimizar a ocorrência de erros. Em obras de não-ficção, essa etapa final é fundamental.

Clã dos Livros: Falar sobre personagens tão conhecidos, a meu ver, é muito complicado. Principalmente quando tais personas carregam em si mitos e reproduções que se confundem; que trilham uma linha confusa entre a ficção e a realidade. Levando em conta tal fato, você considerou um trabalho desafiador? Foi difícil o processo de publicação da obra? 

Adriana Negreiros: Lidar com os mitos, lendas e fantasias em torno do tema do cangaço foi uma das minhas maiores dificuldades. Em muitos momentos, senti uma angústia muito grande diante de tantas versões para uma mesma história. Como algumas delas eram impossíveis de ser checadas, optei por apresentar ao leitor as diferentes narrativas para um mesmo acontecimento – foi o que fiz, por exemplo, ao contar como Lampião conheceu Maria Bonita. Hoje, passados mais de 80 anos daquele fato e sem testemunhas vivas, considero praticamente impossível dizer, com precisão, qual é a versão verdadeira. 

Clã dos Livros: Como foi a recepção por parte dos leitores? 

Adriana Negreiros: Li palavras muito generosas de leitores que gostaram da obra – geralmente, esses comentários chegam a mim pelas redes sociais. Quem não gosta geralmente não se dá ao trabalho de escrever para a autora reclamando – então, tive pouco acesso às críticas. Mas li mais de um comentário sobre o fato de o livro trazer poucas informações sobre a Maria Bonita. Concordo com essa crítica, mas tenho uma justificativa: Maria morreu em 1938, muito jovem, sem jamais ter dado entrevistas. E, em vida, era solenemente ignorada pelos cronistas, à semelhança do que ocorria em relação às demais mulheres. Todos os olhares estavam voltados para os homens. Portanto, reconstruir a trajetória de Maria Bonita me obrigou a tirar leite de pedra, com o perdão do clichê. Muitas vezes, ao longo do processo de produção do livro, questionei-me se aquilo faria sentido, se não seria melhor abandonar aquela ideia e procurar um personagem sobre o qual eu tivesse mais informações. Com o tempo, contudo, fui dando-me conta de que a falta de informação era, por si só, uma informação muito relevante. Uma evidência bastante forte de como as mulheres são silenciadas e têm suas trajetórias obscurecidas. Não desistir da Maria Bonita e ir atrás dela nos becos mais inatingíveis da história foi uma decisão política. 

Clã dos Livros: Na obra você cita o museu casa de Maria Bonita em Paulo Afonso BA. Temos uma descrição da realidade do local, que se encontra em precariedade. Você acredita que seria necessária uma reforma nessa parte de nossa história? Eu não digo apenas pelo que já se encontra ali, mas você acredita que os fatos precisam ser revistos? 

Adriana Negreiros: Procurei descrever a precariedade do museu, e a forma relaxada como a memória de Maria é ali tratada. A descrição tem propósitos metafóricos, por assim dizer – a precariedade do museu é semelhante à da memória em torno da figura da Maria. Acredito que seja necessário não exatamente uma reforma ou uma revisão, palavras perigosas em um momento em que se propõem releituras desonestas da história, mas sim um olhar que não contemple apenas a figura do homem branco e ocidental. Nós, mulheres, precisamos contar as nossas histórias, e do jeito certo, sem fantasias ou leituras romanceadas.

Clã dos Livros: De onde surgiu a ideia para a elaboração da obra? E desde quando você pensava em fazer algo com base nas mulheres do cangaço?

Adriana Negreiros: O cangaço é um tema que me fascina desde a infância. Sou uma paulistana típica dos anos 70, filha de nordestinos que se mudaram para São Paulo para tentar uma vida melhor no “Sul Maravilha”. Cresci em Fortaleza, no Ceará, e passava as férias em Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde viviam os meus avós. Lá, ouvia frequentemente as histórias da tentativa da invasão a Mossoró pelo bando de Lampião, em 1927 – ocasião em que os bandoleiros foram colocados para correr pelos mossoroenses. Na minha turma de primos, eu era a única menina, e enquanto tocávamos o terror pelas ruas da Cohab (bairro da periferia de Mossoró), ouvia de minha Tia Toinha que eu era a Maria Bonita no meio do bando de Lampião. Conto tudo isso apenas para mostrar como o tema sempre fez parte do meu imaginário – e as histórias de cangaceiros, todas trágicas (e, por incrível que pareça, com algum toque de humor) seduzem-me desde sempre. Desse modo, quando estava procurando um tema para escrever meu primeiro livro, achei que me debruçar sobre o assunto seria uma experiência prazerosa. E escolhi Maria Bonita porque queria uma perspectiva feminina.

Clã dos Livros: Eu sou uma grande apreciadora de história. Sou feminista, e assim sendo, a imagem romantizada de Maria Bonita nunca me comprou. Mas mesmo já sabendo de muitos aspectos cruéis da verdadeira Maria Bonita, me choquei e me emocionei com fatos relatados que desconhecia. Como foi a experiência da Adriana, enquanto pessoa, na pesquisa dos fatos ocorridos não só para Maria Bonita, mas para tantas outras mulheres do cangaço? Foi difícil? 

Adriana Negreiros: Foi bastante difícil lidar com a violência contra as mulheres. Duas situações foram particularmente complicadas. A primeira delas diz respeito ao rapto seguido de estupro das meninas. Escrever sobre o estupro de Dadá foi extremamente difícil, por inúmeras razões. Acho que somente quem é mulher consegue entender a minha dificuldade. E, além de mulher, sou mãe – e, quando escrevi sobre este episódio, especificamente, minha filha mais velha tinha exatamente a idade de Dadá ao ser raptada (12 anos). A segunda diz respeito ao abandono dos bebês após o nascimento. Você consegue imaginar a dor de uma mãe ao entregar o seu bebê recém-nascido para um alguém que ela mal conhece? E mesmo que conhecesse? Como lidar com essa dor? Não tem como não pensar nisso e não se emocionar. Eu me arrepio sempre que preciso voltar a esse tema. 

Clã dos Livros: Como foi a sensação de ter uma receptividade positiva da obra? 

Adriana Negreiros: Foi maravilhoso. A receptividade superou todas as minhas expectativas e me deu forças para seguir nesse caminho (tanto que um segundo livro já está em gestação). 

Clã dos Livros: Lampião tem uma imagem de homem bravo, arretado. E quando foi adaptado para a TV, o cabra inclusive teve uma personificação bonita, que hoje poderia apontar como um bad boy exalando sex appeal. Na sua obra, ocorreu uma desmistificação não só de Maria Bonita, mas também do próprio Lampião. Temos uma revelação da sua aparência, e nos é revelado ainda muitas atrocidades até então desconhecidas pela maioria das pessoas. Algum fato sobre Lampião era desconhecido por você até a elaboração da obra? Você também, em algum momento, foi comprada pelo mito Lampião e quando descobriu algumas realidades, vamos assim dizer, se surpreendeu? 

Adriana Negreiros: No cinema, na TV e nos cordéis, Lampião costuma ser tratado como um justiceiro – podia até cometer suas atrocidades, mas era, conforme essa visão romanceada, por revolta contra a injustiça social. Na verdade, essa imagem de Robin Hood é totalmente equivocada. Lampião estava muito mais conectado à elite do que ao povo. Alguns de seus melhores amigos eram coronéis e políticos. Não me lembro de, em algum momento, ter tido uma imagem favorável de Lampião. Nunca o considerei um herói (talvez porque minha avó, que me contava as histórias de cangaceiros, tivesse verdadeiro pavor a ele). A despeito disso, como personagem, Lampião é fascinante. Foi um homem de inteligência excepcional, dotado de elevado senso de estratégia. Ariano Suassuna disse que Lampião podia ter todos os defeitos, mas não era uma alma ordinária. Sou da mesma opinião. 

Clã dos Livros: Eu acredito que seu livro tenha sido um verdadeiro presente in memorian a tantas mulheres que sofreram os abusos dessa época tão horrenda. Em minha opinião, você não só qualificou os relatos dessas mulheres como também, indiretamente, as ouviu e as acolheu. Isso é um marco feminista porque realmente eu não me lembro de já ter lido, seja em documentário ou ficção, essa abordagem pelo lado vítima. Sempre nos é posto que elas escolheram livremente esse caminho. Você recebeu críticas negativas ou chegou a ser desacreditada com isso? 

Adriana Negreiros: Fico feliz que você tenha essa opinião. Um aspecto que me chamou a atenção desde o começo foi justamente esse – o quanto as mulheres cangaceiras tiveram suas histórias desacreditadas. Dadá sempre foi tida como mentirosa, dramática, exagerada. O mesmo ocorreu com Sila, outra cangaceira raptada ainda menina. Numa resposta anterior, comentei sobre a minha dificuldade em descobrir a versão verdadeira para um mesmo acontecimento. Notei, muito cedo, que para contrapor-se às versões das mulheres havia sempre uma outra, tida como mais confiável, de um homem. E que, por maiores que fossem as evidências a favor da versão das mulheres, era sempre a masculina que prevalecia. Ou, o que me parece ainda mais sério, os fatos eram os mesmos, mas justificados de forma a limpar a barra dos homens. Para você ter uma ideia, Corisco raptou Dadá aos 12 anos. Levou-a para o meio da caatinga contra a vontade dela. Anos depois, quando Lampião e Maria Bonita já estavam mortos, Corisco tentou, sem sucesso, ocupar a liderança do cangaço. E sabe o que muitos dizem? Que Corisco poderia ter conseguido suceder Lampião, não tivesse Dadá o “atrapalhado”, pois era “mandona” demais. Há quem diga ainda que Corisco talvez tenha sido violento ao raptá-la, mas em compensação ensinou-a a ler e escrever. Dadá, a meu ver, foi uma das personagens mais injustiçadas da história do cangaço. Foi retratada – por homens – como uma chata, autoritária e mentirosa. Como mulher, e como feminista, essas histórias me dão nos nervos. E há ainda o racismo – Dadá era negra, Corisco tinha a pele clara. Corisco entrou para a história como o “Diabo Louro”, herói da resistência. Dadá terminou seus dias tida por muitos como amalucada. Quanto às críticas por essa abordagem, não recebi. Mas imagino que muitos (homens, sobretudo) não concordem com essa opção narrativa.

Clã dos Livros: Enquanto leitora, eu me emocionei com a obra. Quando cheguei em suas notas finais, pude sentir o quanto você se dedicou nisso tudo. Qual a sensação que teve quando finalmente concluiu a elaboração de Maria Bonita?

Adriana Negreiros: Uma sensação de um baita alívio por ter conseguido finalizar um trabalho que me consumiu tanta energia. Ao mesmo tempo, fiquei com saudades da Maria e da Dadá. 

Clã dos Livros: Os direitos audiovisuais da obra foram comprados pela Paranoid e já sabemos que vai se transformar em um seriado. O que já se sabe a respeito dessa notícia? 

Adriana Negreiros: Por enquanto, é isso mesmo o que sabemos. Ainda não tenho nenhuma novidade a respeito dessa negociação.

Clã dos Livros: Adriana muito obrigada pela entrevista, pedimos para que deixe um recadinho para todos os seguidores e seguidoras do Clã dos Livros que ainda não conhecem a obra.

Adriana Negreiros: Eu que agradeço, Bia. Foi um prazer.

Para os seguidores do Clã dos Livros:

Pessoal, muito obrigada pelo carinho! Espero que a entrevista seja um incentivo para vocês lerem Maria Bonita, sexo, violência e mulheres no cangaço. Talvez não seja um livro para ler antes de dormir, relaxar e ter bons sonhos (porque a história é pesada), mas – assim eu espero – para nos tornar conscientes da violência que marca a nossa história. Violência esta que, como de hábito, é maior para as mulheres. Um beijo!

Leia a resenha do livro AQUI.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Post Bottom Ad

test banner